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A ABASC e os bacharéis em Saúde Coletiva na regulamentação da profissão de sanitarista: o poder da participação social
Em 16 de novembro de 2023 foi sancionada a Lei Nº 14.725, DE 16 de novembro de 2023 e isso só foi possível porque a ABASC atuou fortemente na articulação para sua aprovação. A ABASC foi criada como uma organização em favor do trabalho para bacharéis em Saúde Coletiva e a regulamentação é um dos passos que nos permitirá, cada vez mais, inserir o bacharel em Saúde Coletiva em espaços de trabalho.
Por Comunica ABASC
Brasília, 17 de novembro de 2023 - Ontem foi sancionada pelo Presidente da República, Luís Inácio Lula da Silva, a "Lei nº 14.725, de 16 de de novembro de 2023", que regulamenta a profissão de sanitarista. Essa lei é uma conquista para todos os bacharéis em Saúde Coletiva e sua criação é fruto de mais de 10 anos de militância de egressos, estudantes, professores e profissionais da área. A ABASC, criada em 2019, foi protagonista na articulação que resultou em sua aprovação e esse texto é um breve resumo da trajetória que permitiu a publicação desta lei.
A graduação em Saúde Coletiva é resultado de uma discussão que ocorre desde a década de 1990, associada diretamente à Reforma Sanitária, em que se debatia a necessidade de um olhar diferenciado para a saúde, ultrapassando a barreira do hegemônico e limitado olhar puramente biológico, e abraçando a visão social e o conceito ampliado de saúde. O Reuni (Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais) permitiu a criação do curso, sendo que a primeira turma iniciou seus estudos no segundo semestre de 2008, no Campus Ceilândia da Universidade de Brasília.
Com as primeiras formaturas ocorrendo entre 2012 e 2013, surgiu a necessidade de organização trabalhista para os egressos. Pioneiros no mercado de trabalho, eles se depararam com a dificuldade de inserção, que é comum entre recém-formados, mas agravada pelo desconhecimento sobre o curso. "O que faz um bacharel em Saúde Coletiva?" é uma pergunta comum no cotidiano de estudantes e profissionais até hoje, sendo objeto de estudo de vários colegas que se interessaram pela temática.
A inexistência de instituições trabalhistas para a Saúde Coletiva, motivou as discussões entre diversos estudantes, profissionais e professores. Que tipo de instituição precisaria ser criada para isso? Seria necessário um conselho de classe? Ou seria um sindicato? Seria possível criar uma associação? Com a ajuda de diversas pessoas, inclusive da área do direito, ficou claro que deveríamos ter uma instituição de defesa trabalhista, que permitisse a representação desses profissionais e a congregação de todos os que quisessem fazer parte, desde que estivessem alinhados com as regras que seriam estabelecidas no documento que criasse essa organização.
Adotamos o framework de 5 etapas da consolidação de profissões de saúde, entendendo que precisaríamos criar uma associação. No texto “O objeto e a prática da Saúde Coletiva: o campo demanda um novo profissional?”, de Jairnilson Paim, disponível no livro “Desafios para a Saúde Coletiva no Século XXI”, são elencados 5 passos para a profissionalização de profissões da saúde. Esses elementos foram referenciados do livro “Profissões da Saúde: uma abordagem sociológica” de Maria Helena Machado, que analisa trabalhos na área da sociologia, nacionais e internacionais, sobre a construção e contemporaneidade das profissões da saúde. Os passos são:
- O trabalho torna-se uma ocupação de tempo integral;
- Criam-se escolas de modo que a transmissão de conhecimentos é feita de modo sistematizado;
- Forma-se a associação profissional, quando se definem os perfis profissionais que fornecerão identidade do grupo;
- A profissão é regulamentada; e
- Adota-se um código de ética e estabelecem-se normas e regras profissionais.
O texto ainda traz um passo subsequente: a necessidade de uma carreira pública para a Saúde Coletiva. Nós já alcançamos alguns desses passos, chegando à regulamentação da profissão, mas ainda temos muita luta para criar carreiras públicas na União, estados e municípios, priorizando também a criação do código de ética próprio para os bacharéis em Saúde Coletiva.
Nesse ponto, é interessante examinar os fatos que resultaram na criação da ABASC e você pode ler nossa história completa aqui, porque focaremos nos eventos que ocorreram em 2019. Voltando em 2009, quando ocorreu a "I Assembleia Nacional dos Estudantes de Saúde Coletiva" no 9º Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva da Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (ABRASCO), houve a discussão sobre caminhos de representação profissional para esse novo profissional. Em julho de 2018, ainda não havia nenhuma entidade que nos representasse e isso foi discutido novamente em uma oficina no pré-congresso do 12º ABRASCÃO. Por isso, em 2019, usando uma estratégia alternativa, o grupo que formou a primeira gestão da ABASC organizou um evento chamado chamado de “I Arraiá da Saúde Coletiva”, em junho de 2019, do qual saiu a comissão eleitoral que permitiu a consulta pública para a criação do estatuto social e o agendamento da primeira assembleia da instituição, que resultou na criação da ABASC. Em 3 de agosto de 2019, em assembleia na gloriosa Universidade de Brasília, foi fundada a Associação de Bacharéis em Saúde Coletiva (ABASC).
Com a criação, tínhamos várias missões, acumuladas por cerca de uma década. Desde o inicio priorizamos a regulamentação da profissão, inicialmente nos restrigindo ao bacharel em Saúde Coletiva, mas ampliando para o sanitarista conforme as dfiscussões avançaram. Há uma discussão antiga, que ocorre desde o mais remoto movimento estudantil da Saúde Coletiva, sobre o que nos diferencia dos profisisonais de saúde já existentes no Brasil. Há também uma tradição de sanitaristas no país- reflexo da formação histórica da nação, bem como da tradição do setor de saúde- que nunca precisaram estar regulamentados, pois já encontravam a proteção social necessária em suas formações básicas. Por que regulamentar a profissão agora?
Considerávamos a regulamentação muito importante porque todas as outras profissões da saúde eram regulamentadas e isso foi um ponto de questionamento de diversos órgãos com os quais os movimentos de bacharéis em Saúde Coletiva tentaram dialogar para uma possível inserção profissional. A ausencia de uma regulamentação configurou uma barreira para a inserção nesses cenários, dada a tradição profissional na área da saúde. Por isso, abraçamos o texto do projeto de lei de regulamentação que foi desenvolvido no Fórum de Graduação em Saúde Coletiva da ABRASCO, fizemos alterações no texto e convocamos uma consulta pública para sugestões aberta a todo o Brasil.
Encerramos a consulta pública em nossa assembleia anual, abrindo um espaço para que todos os profissionais do Brasil, mesmo os que não eram associados, pudessem participar e opinar no texto. Desse encontro, saímos com o primeiro texto finalizado do projeto de lei, direcionado apenas para bacharéis em Saúde Coletiva. Inicialmente, consideramos que não tínhamos poder para representar todos os Sanitaristas, mas queríamos delimitar o escopo de atuação do bacharel e a lei especifica nos permitiria isso. Trabalhamos bastante, sendo que muitos dos componentes da nossa gestão enfrentavam jornadas duplas ou triplas compostas por seu trabalho principal, a gestão da ABASC e a consultoria técnica que assumimos para sustentar a associação, que possuía recursos insuficientes para alcançar nossos objetivos.
Com o recurso obtido custosamente por meio da consultoria técnica da ABASC contratamos uma consultoria de relações governamentais, a RGB- a qual recomendamos fortemente-, que ajudou a entender e articular quais deputados poderiam apoiar nossa pauta e apresentá-la como projeto de lei na Câmara dos Deputados. Conseguimos apoio do deputado Dr. Alexandre Padilha, médico infectologista e sanitarista (Doutor em Saúde Pública), que tem uma atuação importante na Saúde Pública e aceitou ser o autor do nosso projeto de lei, sendo o responsável pela apresentação dele à Câmara dos Deputados. Com o apoio, o projeto de lei se tornou mais abrangente, definindo a profissão de sanitarista, que já havia se tornado uma ocupação do Código Brasileiro de Ocupações (CBO)- como consequencia do empenho dos movimentos estudantis e trabalhistas de graduados em Saúde Coletiva- e que possuía intersecção entre as atribuições do bacharel.
Nesse período discutimos com diversas organizações e parceiros articulando apoio, mapeando possíveis pontos de contradição e mitigando possíveis ameaças ao projeto. As discussões nos ensinaram algumas coisas importantes sobre regulamentação da profissão. Primeiramente, as profissões são de livre exercício no Brasil, por isso houve quem defendesse que essa era uma luta desnecessária. Também nos perguntaram qual a necessidade da regulamentação, já que ela jamais resolveria nosso problema de empregabilidade usando as profissões de tecnologia da informação como exemplo- pois embora não tenham regulamentação, não enfrentam dificuldades de inserção porque o mercado de trabalho deles se encontra aquecido. Houve ainda quem sugerisse que abandonássemos temporariamente a luta pela regulamentação da profissão de sanitarista para discutir as diretrizes nacionais dos cursos de graduação em Saúde Coletiva, que deveriam ser prioridade naquele momento. Ainda retornamos por diversas vezes ao dilema entre sanitaristas de graduação ou sanitaristas de pós-graduação e ainda existe um grupo de estudantes e bacharéis que considera que deveríamos ter nos restringido à nossa graduação.
Tivemos que estudar e trabalhar bastante para superar essas questões. Consultamos tanto material e recebemos as mesmas questões tantas vezes que montamos uma planilha com perguntas e respostas padrão, embasadas na literatura sobre profissões da saúde, para que nossos representantes e nossa assessoria parlamentar pudessem respondê-las nas agendas oficiais da ABASC. Nese contexto, entendemos que a luta pela regulamentação tem a ver com a cultura organizacional das profissões de saúde no Brasil, posteriomente entendendo que essa é uma tendencia global. Profissionais de saúde lidam com vidas humanas e para protegê-las é necessário regulamentar e fiscalizar os profissionais que atuam na área. Além disso, precisamos delimitar nosso escopo de atuação sem "invadir" as atribuições das outras profissões de saúde tradicionais. Definir esse escopo não teve por finalidade a reserva de mercado, mas a definição de limites para nossa atuação. Sempre nos posicionamos como um grupo que quer "somar e não dividir". Comparar o contexto cultural do setor saúde com o setor de tecnologia da informação, com uma tradição cultural liberal herdada do Vale do Silício, é impossível nesse contexto e nos surpreendeu que quem atua com ciências humanas e sociais nos tenha questionado isso. Ou seja, sabemos que a lei não resolverá o problema de empregabilidade, mas consideramos que ele será um recurso valioso na articulação por inserção, principalmente no setor público. Além disso, não era prioridade dos egressos da graduação em Saúde Coletiva discutir diretrizes nacionais para os cursos. Embora consideremos essa discussão muito importante, priorizamos o projeto de lei por causas das barreiras que encontramos na inserção usando a sua inexistência como justificativa e consideramos que esse dispositivo facilitaria nossa articulação nesses espaços.Também entendemos que era politicamente mais estratégico abraçar a profissão de sanitarista, incluindo nossos colegas pós-graduados e aqueles que atuam no serviço como sanitaristas. Entedemos que os profissionais que atuam no serviço, foram formados por ele por meio de estratégias de educação que não as formais. Essa compreensão é parte do que aprendemos na graduação, por isso não poderíamos excluí-los de nenhuma maneira. O apoio dos programas e egressos de pós-graduação também se mostrou valioso para nós.
Contando com a autoria do deputado- agora ministro- Alexandre Padrilha, o Projeto de Lei 1821/21 obteve êxito ao ser aprovado em três comissões da Câmara dos Deputados. A conjuntura política não estava amigável à regulamentação de quaisquer profissões, sendo que o projeto recebeu recomendações desfavoráveis de instituições do SUS durante a pandemia. Para conquistar novos aliados, usamos a pandemia como trunfo, demarcando a necessidade de profissionais que entendam a Saúde Pública de forma abrangente, mostrando como esse profissional é valioso e que ele já atua no SUS, mesmo sem regulamentação. Nesse processo, a Deputada Dayse Amarilho, o Deputado Mauro Nazif e o Deputado Odorico Monteiro desempenharam papéis fundamentais na relatoria do projeto, fornecendo apoio crucial à causa, o que resultou na aprovação em todas as comissões da câmara. No Senado, a ABASC contou com o apoio da Senadora Ana Paula Lobato, que não apenas atuou como relatora, mas também desempenhou um papel fundamental na articulação que levou à aprovação na Comissão de Assuntos Sociais, na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania e na plenária do Senado Federal. Todas as etapas contaram com a aticulação da ABASC, seja por meio dos gabinetes dos deputados ou por meio da articulação direta com parlamentares para os quais pedimos votos favoráveis e explicamos como isso poderia representar maior eficiência para o SUS.
A regulamentação da profissão de sanitarista é um marco desse novo dia para nós e para o SUS. Ele ocorre associado a um momento de reconstrução do sistema, que enfrentou diversas dificuldades nos últimos anos. Lutaremos para participar desse novo momento do SUS e usaremos a lei como dispositivo para alcançar nossos objetivos. É fundamental destacar o poder da participação social na construção de um Estado brasileiro mais justo e equânime. Ver o processo legislativo funcionando deu esperança para todos nós e fé no direito brasileiro, que nos permite participar dessa construção. Sempre falamos do chamado "complexo de vira-lata" do brasileiro, que tem entre um dos seus traços culturais a crença de que nada funciona no país. Perceber que o desenho dos dispositivos legais permite que a população e os movimentos sociais podem e devem atuar na construção do país é animador. O processo que construiu a regulamentação da profissão de sanitarista é formado completamente pela participação social e não poderia ser diferente dado que esse é um dos principios do SUS, protegido pela nossa Constituição Federal- a constituiçao cidadã de 1988- que protegeu o sistema em momentos obscuros.
O dia 17 de novembro de 2023 é a nossa linha de chegada para a regulamentação com a publicação da Lei nº 14.725, de 16 de de novembro de 2023 no Diário Oficial da União. A sanção presidencial estava prevista para ser assinada até hoje e não tínhamos expectativa quanto a uma cerimonia de assinatura, que foi articulada, mais uma vez pelo nosso grade aliado, Ministro Alexandre Padilha. A ABASC foi convidada de honra da cerimônia enviando representantes das três diretorias que passaram pela associação, além de notáveis fundadores. Todos nós ficamos emocionados com essa conquista- inclusive tenho lágrimas nos olhos ao finalizar esse texto-, mas sabemos que, se por um lado finalizamos essa breve sprint (de apenas 10 anos ou 30, se você contar a partir da Reforma Sanitária), temos um longo caminho luta pelo reconhecimento e ampliação da inserção profissional do bacharel em Saúde Coletiva, em que a regulamentação da profissão de sanitarista é apenas a largada.